sexta-feira, 6 de junho de 2008

Familia Psicopedagogia e pó-modernidade
Elisa Maria Pitombo
novembro/2007

Neste artigo apresento a discussão sobre as relações entre a família na pós-modernidade e a Psicopedagogia, visando contribuir para ampliação da visão clinica e suas implicações.
A necessidade que em geral a pessoa tem de uma outra para se completar, de pertencer, estende-se desde a família de origem até todos os relacionamentos. O pertencimento, a identidade, como o casamento e a família adquiriram novas formas na pós-modernidade.
Numa época onde o tempo individual foi sendo aniquilado pelo espaço cotidiano, o aqui e o agora é ressaltado devido ao ritmo das mudanças da atualidade. As diferenças de papéis na família, na pós-modernidade, questionam as relações da modernidade. A crise da família moderna pode ser pensada conforme Vaitsman (1994) como resultado do questionamento da concepção de gênero desenvolvida pela modernidade. Assinala com lucidez, a autora, que a crise dos discursos na família da pós-modernidade instituiu, através dos vários desdobramentos, relações flexíveis e plurais.
Stuart Hall (2001) na perspectiva dos Estudos Culturais, registra que há na pós-modernidade identidades culturais de pertencimento a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e nacionais. Defende que as sociedades da modernidade tardia são indicadas pela “(...) “diferença”; atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de “posições de sujeito”, isto é, identidades - para os indivíduos (...) “ ( p. 17).
No ponto de vista de Stuart Hall (2001), houveram cinco grandes avanços na teoria social e nas ciências humanas sobre o pensamento na segunda metade do século XX, descentramentos realizados através de rupturas do discurso moderno.
O primeiro descentramento segundo o referido autor, foi a noção do Estruturalismo marxista de Althusser, de que há uma essência universal do homem, como atributo de cada indivíduo particular. Já o segundo descentramento advém da descoberta do inconsciente de Freud. Esta concepção concebe a identidade, não como algo inato, mas determinado pelos processos inconscientes e estabelecida de maneira dinâmica na relação com o outro. Esta é entendida com oposta a idéia de identidade fixa e estável.
Representado pelas idéias do lingüista estrutural Saussure, o terceiro descentramento pontuado por Stuart Hall (2001), apregoa que a língua é um sistema social e não exclusivamente individual, ou seja, a identidade é representada por palavras com significados inerentes e instáveis. Nesta visão o indivíduo ao comunicar-se procura um fechamento representado pela identidade, mas é perturbado pela diferença, devido a significantes que escapam ao controle e que subvertem a tentativa do indivíduo criar mundos estáveis. Por outro lado o quarto descentramento da identidade e do sujeito é lançado pela visão de Foucault, sobre o “poder disciplinar” que regula desde o governo da espécie humana até o indivíduo e seu corpo, representado pelas instituições: oficinas, escolas, prisões, hospitais, clinicas, e outras. Para ele, as instituições da pós-modernidade quanto mais organizadas e coletivas forem, mais desenvolverão o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito.
O ultimo descentramento, o quinto, é criado pela critica teórica do feminismo e seu movimento social. Este acentuou a distinção entre o subjetivo e objetivo, o privado e o público, a família e a sexualidade. Enfim, o feminismo politizou de certa forma, a subjetividade, a identidade e o processo de identificação de homens e mulheres, de mães e pais e de filhos e filhas.
Estas idéias de Stuart Hall (2001) apontam na direção de reflexões e seus efeitos desestabilizadoras da pós-modernidade e sobretudo sobre a identidade e o sujeito. Penso ser importante considerar este cenário cultural na discussão sobre a família a Psicopedagogia e sua clinica.
Desta forma a Psicopedagogia no Brasil é atingida por estas mudanças de identidade em relação aos sistemas culturais. Masini (2006) assinala com propriedade que os psicopedagogos assumem grandes desafios no contexto do século XXI “(...) em que o homem recobre sua maneira própria de sentir, pensar, agir em meio a tantas informações”( p. 249).
Nessa perspectiva de pós-modernidade, a família na atualidade acena para identidades contraditórias, para a pluralidade de centros de poder, e o sujeito com problema de aprendizagem apresenta-se como parte desta dinâmica de diversidade e diferenciação.
Para tanto, creio ser fundamental considerar na escuta clínica psicopedagógica a problemática do sujeito com problemas de aprendizagem, sobretudo através dos pais, a fim de iniciar o desvendar do significado que o não- aprender adquire na dinâmica familiar pós-moderna.
Existe no ponto de vista de Paín (1986), ao abordar o sintoma do problema de aprendizagem e sua relação com a família, a concepção de articulação entre a instância e a estrutura. A partir desta maneira de entender o sintoma do problema de aprendizagem, aponta em direção à maneira particular dos membros da família, cuja função encontra-se no drama. Para ela o emergente, o sujeito com problema de aprendizagem, é o sinal, o sintoma e o significado. Considera que “as perturbações na aprendizagem, normais ou patológicas, tendem a evitar aquelas modificações que o grupo não pode suportar, em função do seu particular contrato de sobrevivência”(PAÍN, 1986, p. 37).
Portanto, no meu ponto de vista, a compreensão da linguagem, da comunicação, ou seja, do discurso cultural estabelecido pela família pode oferecer dados que favorecerão a compreensão do significado do não-aprender nesta instituição.
Na minha prática clínica psicopedagógica, atendendo famílias com problemas de aprendizagem, é comum os seguintes discursos ao referir-se a seus filhos: “é distraído”, “não quer nada com nada” ,“não tem força de vontade”, “é preguiçoso”, “talvez eu seja meio nervoso com ele”, “não tenho paciência”, “mimamos um pouco”, “não consegue fazer a lição de casa sozinho, então tenho que fazer com ele”...
A comunicação segundo Bateson, citado por Watzlawick, Beavin e Jackson (1993), não transmite apenas informação, mas, sobretudo, impõe um comportamento. Essas operações são conhecidas respectivamente como “relato” e “ordem” da comunicação. Para explicitar tais conceitos serve-se de uma analogia fisiológica: se A, B e C forem considerados uma cadeia linear de neurônios, então B é o “relato” que o neurônio A lhe enviou ao disparar, e por outro lado é também uma “ordem” enviada ao neurônio C para que dispare.
Ao ampliar esta discussão Bateson assinala, na referida obra, que o “relato“ da mensagem transmite informação, portanto o conteúdo da mensagem, que pode ser falsa ou válida, inválida ou indeterminável. Já a “ordem” é relativa à espécie da mensagem e como deve ser considerada, ou seja, refere-se às relações entre os comunicantes. Observa este autor que (...) parece que quanto mais espontânea e “saudável” é uma relação, mais o aspecto relacional da comunicação recua para um plano secundário. Inversamente, as relações “doentes” são caracterizadas por uma constante luta sobre a natureza das relações, tornado-se cada vez menos importante o aspecto de conteúdo da comunicação (In Watzlawick, Beavin, Jackson, 1993, p.48).
Bateson pontua que o importante é perceber a relação existente entre o conteúdo (relato) e a relação (ordem) da comunicação.
Paín (1986) alerta que a escuta clínica psicopedagógica deve focar-se para o contexto, no caso a relação (ordem) do relato dos pais. Caso acrescentem, por exemplo, à expressão “meu filho não aprende”, “mas ele é esperto que só vendo”. Aqui a mãe chega a distinguir a sua relação (ordem) com a criança e desta como sujeito independente.
Por outro lado, a reação comunicativa que a família terá frente ao problema de aprendizagem, a meu ver, está vinculada aos valores sociais que atribui à aprendizagem escolar. O fracasso escolar, o não cumprimento dos “deveres escolares”, terá uma conotação muito grave para aquelas famílias que consideram a escola um local de prestígio e meio de inserção ou ascensão social. Há ainda outras famílias que, frente ao problema de aprendizagem, atribuem a dificuldade unicamente à escola com o seguinte discurso: “meu filho não se adapta a esta escola”, ou ainda “a professora não sabe ensinar a meu filho”.
Outras famílias, de maneira oposta, vêem um abismo cultural entre a sua realidade e a escola e submetem-se passivamente às solicitações desta instituição, exercendo sobre o filho uma enorme pressão em termos de exigências, por vezes desqualificando suas reais dificuldades.
Durante os atendimentos psicopedagógicos clínicos que realizo com as famílias, percebo nos pais, cada vez mais, uma ansiedade para demonstrar detalhes da problemática defrontada ao lidar no seu cotidiano com o comportamento de seus filhos. Em geral chegam ao atendimento com muitas questões para que respostas sejam dadas de pronto. Tais colocações demandam de minha parte, uma escuta clínica apurada para que estas questões comunicativas sejam transformadas e devolvidas a eles, a fim de encontrarem possíveis encaminhamentos dentro de sua dinâmica peculiar. A reflexão de seus discursos, que realizo, tem o intuito de oferecer condições para que os pais percebam o conteúdo (relato) e a ordem (relação) de sua comunicação e a resignifiquem no atendimento psicopedagógico familiar.
Concordo com Paín (1986) quando assinala que “(...) é formidável a relação que se estabelece entre a articulação do sintoma e a reação que provoca (...)” (p. 39). O sintoma e seu significado, para a autora, constituir-se-ão na imagem que os pais possuem sobre as causas que originaram o problema de aprendizagem. E da mesma maneira desenvolvem mecanismos de defesa para suportar o problema de aprendizagem frente a desvalorização social relativa à ideologia da família perante a aprendizagem.
Apesar de a família ser a matriz do desenvolvimento psicossocial de seus membros, deve adaptar-se as exigências culturais da pós-modernidade. Porém ao modificar-se frente a estas demandas socioculturais, deve manter a continuidade do crescimento de cada um garantindo-lhes as diferenças de comportamento, enquanto um sistema aberto e flexível, garantindo ao sujeito a possibilidade
Minuchin (1990), em seus estudos, apresenta a idéia de que a família opera por meio de padrões transacionais. Estes se estabelecem em padrões de relacionamento, que por sua vez reforça e regula o próprio sistema familiar.
Os padrões transacionais (Minuchin,1990), ao regularem o comportamento dos membros de uma família, são mantidos por dois sistemas de repressão: o genérico, composto de regras universais como a hierarquia de poder entre pais e filhos e a complementaridade de funções entre marido e mulher; e o idiossincrático, que se refere às expectativas mútuas entre os membros específicas de uma família, ou melhor, originadas em anos de negociações explícitas e implícitas em torno de eventos cotidianos, ou ainda em contratos originais esquecidos e não explicitados.
A família, enquanto sistema na visão de Minuchin (1990), se mantém num interjogo de resistência à mudança e manutenção de padrões preferidos. No entanto, assinala que há padrões alternativos no sistema familiar a espera para serem utilizados frente a situações de conflito ou mudança. A adaptação da família nestas circunstâncias, depende da extensão dos padrões de acessibilidade a padrões transacionais alternativos e da própria flexibilidade que se instaura na situação.
Noto, na minha prática e supervisão clínica psicopedagógica, que quando o problema de aprendizagem é entendido na família, em especial pelos pais, como a possibilidade para que se inaugurem novos padrões de comportamento, nas funções parentais e filiais, torna-se a oportunidade para clarear o significado do sintoma e re-significá-lo através de padrões alternativos de aprendizagem.
No sistema familiar, quando as fronteiras de funções de pais , de filhos e de casais, são nítidas e entendidas como regras de quem participa e como participa neste grupo, promovem a diferenciação do sujeito No entanto, tais mudanças requerem novos padrões de negociação e aprendizagem mútuas. Os subsistemas, conjugal e parental, de complementação e acomodação, e o fraternal, de socialização e desenvolvimento da autonomia, são matrizes de apoio a novos padrões de aprendizagem.
A diferenciação do sujeito que não-aprende, de padrões e modalidades de aprendizagem próprias, está vinculada à maneira como foi estabelecida a relação com seus pais. O nível de diferenciação se estabelece pelo relacionamento do sujeito que não aprende com seus pais, que determinam quanto e o como pode desenvolver a sua autonomia para aprender.
O que observo, com certa freqüência, nos atendimentos psicopedagógicos clínicos familiares, é que o impedimento para lidar com o problema de aprendizagem está estreitamente vinculado ao grau de diferenciação e ansiedade apresentado pelos pais. Quanto mais os pais necessitam da criança ou jovem para completar seus egos e interesses pessoais, mais a criança ou jovem desenvolverá a necessidade de dependência para com os genitores na aquisição do conhecer. Quando a separação emocional se faz de forma incompleta, os pais e a criança ou jovem com problemas de aprendizagem permanecem sem autonomia para o pensar e conhecer. Quando ainda não há diferenciação de papéis e funções na família, a simbiose se instaura e conduz pais e filhos a uma situação de exclusividade para sobreviver e conhecer.
A diferenciação de papéis e funções na família reflete a capacidade que o sujeito tem de distinguir entre os comportamentos que se fundamentam no seu sistema emocional e aqueles relativos a seu sistema intelectual e sua capacidade para conhecer e aprender. A relação do conhecer é estabelecida pelo conhecimento do outro na relação familiar.
O conhecimento do outro, segundo Paín (1988), é desenvolvido na relação de aprendizagem, porque “(...) este outro é conhecido ou pelo menos reconhecido como possuidor de saber (...)” (p. 82), portanto, difere no papel de ensinante e atribui para o outro, o de aprendente
A atribuição de papéis no sistema familiar, com relação à aprendizagem e ao sintoma do problema de aprendizagem, estará estabelecida pela comunicação, pela linguagem.
Paín (1986) sugere que o nível de comunicação se relaciona com o significado do sintoma, que explicita a articulação do triângulo pai-mãe-filho e os signficantes que o representam. A autora exemplifica a questão relevante da comunicação dos pais com o psicopedagogo quando utilizam pronomes tais como: “dele” ou “dela“ ao se referirem a seus filhos, ou ainda com maior distância usam o “pai” ou “a mãe” , “minha esposa” ou “meu esposo”. Estas comunicações realizadas com “(...) um vago gesto de inclusão” (1986, p. 41) denotam como situam o sintoma, suas funções parentais e filiais e, sobretudo, as fronteiras do sistema familiar. Quando os pais mantêm uma postura comunicativa com uso predominante da primeira pessoa, observo que manifestam o desejo de partilhar com o psicopedagogo a sua ansiedade, suas expectativas e dúvidas. Tal conduta abre um espaço de padrões transacionais alternativos (Minuchin,1990) de interlocução para a articulação da funcionalidade do sintoma. Paín (1986) apresenta alguns pontos importantes na entrevista, “motivo da consulta”, dos quais compartilho em minha escuta clínica psicopedagógica:
“(...) reações comportamentais de seus membros ao assumir a presença do problema (...) fantasias de enfermidade e cura e expectativa acerca de sua intervenção no processo de diagnóstico e de tratamento; modalidades de comunicação do casal e função do terceiro.. “ (p. 42)
Penso que ao considerar a comunicação dos pais e filhos no atendimento psicopedagógico clínico como um sistema familiar flexível, que refaz seus limites e fronteiras conforme as demandas culturais da pós-modernidade, haverá uma atuação clínica dirigida para a re-significação do sintoma na pluralidade de espaços com a atribuição de múltiplas significações que marcaram a formação das práticas e discursos da modernidade.
Nesse momento, dada as características da pós-modernidade de identidades, de pluralidade de centros de poder, novos papéis e funções se instalam no cenário cultural. Acredito que a Psicopedagogia contribui com a diferença de perspectiva sobre a família, a aprendizagem e seus problemas, de maneira a favorecer a construção de relações humanas radicalmente flexíveis e plurais.
Referências
Hall, S. (2003) Da diáspora identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Hall, S. (2001) A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
Masini, E. F. S. (2006) Formação profissional em Psicopedagogia: embates e desafios. Revista de Psicopedagogia, 72, (23), pp. 248-257.
Minuchin, S. (1990) Famílias funcionamento e tratamento. Porto Alegre: Artes Médicas.
Paín, S. (1988) A função da ignorância. Porto Alegre: Artes Médicas, vol. 1.
Paín, S. (1986) Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas.
Stucci, B. (1996) Intervenção simultânea pais-criança com problemas de aprendizagem. São Paulo: Revista Construção Psicopedagógica, n. 3, 1996, pp.18-22.
Vaitman, J. (1994) Flexíveis e plurais: identidade, casamento e família em circunstâncias pós-modernas. Rio de Janeiro: Rocco.
Watzlawick, P. & Beavin Helmick & JJackson, D. (1993) Pragmática da comunicação humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação humana. São Paulo: Cultrix.


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