Para adentrar na
discussão sobre a aprendizagem e o gênero, cuja temática remete a situações
próximas do cotidiano de todos, recorro a uma cena da pratica escolar.
Fernandez (2000) faz
a colocação bastante comum no nosso dia a dia, que pode iluminar o inicio da
nossa reflexão sobre as relações entre o processo de aprender e os gêneros.
Afirma que ao escutar professores, notou os seguintes comentários:
- Uma criança... Ela faz desenhos,... Ela é violenta.
Assim Fernandez
(2000) imaginou que a mestra se referia a uma menina de seis a sete anos de
idade. Quando indagou a professora a respeito da idade e o sexo da criança, esta informa que é um rapaz de dezoito anos.
-Por que então o
chamam de criança? E respondem:
- Porque é um aluno.
Fernandez (2000) conclui
que diante dessa situação, o aluno perde a sua identidade de sexo masculino e
de idade. Ele se transforma em uma menina neutra. Questiona ainda a autora, um
aspecto do qual concordo; será que há necessidade de se infantilizar e
neutralizar os alunos e os filhos?
Sabemos através dos
estudos históricos de Áries (1981) que o primeiro sentimento da infância, a
“paparicação” surgiu no meio familiar, seguido pelos eclesiásticos no século
XVI e pelos moralistas no século XVIII, preocupados com a disciplina e a
racionalidade dos costumes. Estes últimos consideravam as crianças frágeis
criaturas de Deus que necessitavam ser disciplinadas. Esse sentimento foi
transmitido para a esfera familiar. A partir dessa época a criança assumiu um
lugar central dentro da família.
Mas nos dias hoje
parece que ainda há ações familiares e escolares que preservam e até prolongam
o ser criança, ou seja, a infantilização. Em conseqüência dessa postura
neutralizam-se ou então estigmatizam as identidades de gênero e as identidades
sexuais.
Nas polarizações de
posição, entre neutralizar e estigmatizar o gênero e o sexo, creio ser necessário compreender o processo do gênero.
Para Freud, citado
por Ceccarelli (1999), a criança é capaz de distinguir, graças aos signos
exteriores, pai e mãe, o gênero. Essa distinção não leva em consideração a
“diversidade” dos órgãos sexuais. Nesse período a criança, antes dos cinco anos
de idade não realiza a correspondência entre o sexo e o gênero. Na realidade,
nesse período inicial, a aprendizagem dos gêneros realiza-se sem levar em conta
o órgão sexual. Assim o que distingue os gêneros não é o sexo anatômico. Da
mesma maneira, o sexo anatômico não assegura, a priori, o gênero.
Ceccarelli (1999),
afirma na ótica psicanalítica, que a presença, ou a ausência, do órgão sexual
masculino, ou feminino, não é a certeza que o individuo vai se colocar ao lado
dos homens ou das mulheres. Portanto, há dois movimentos distintos que ocorrem
em diferentes momentos: a distinção dos gêneros e a diferença dos sexos.
Porém existem duas
importantes sobreposições entre gênero e sexo.
De um lado, o sentimento prematuro e imutável da identidade de gênero:
“eu sou menino” ou “ eu sou menina”. Do outro lado, o sentimento “eu sou masculino” ou “ eu sou feminina”. A
construção desta ultima sentimento que se refere à identidade sexual masculina
e feminina é resultado de investimentos e identificações da situação edipiana.
O processo de identidade sexual só se completará na época da puberdade “...
quando então a diferença dos sexos terá por base a realidade material
pênis/vagina” (Ceccarelli, 1999, p.155).
Diante dessas idéias,
onde são assinaladas que a identidade de gênero é estabelecida anteriormente a
de sexo, que procurarei traçar algumas reflexões sobre a relação entre
aprendizagem e gênero.
A aprendizagem
desenvolve-se a partir de interações humanas. Os gêneros masculinos e femininos
são aprendidos nas relações sociais: familiares, escolares, etc.. Paechter
(2009) afirma que “..Muito do que a criança ou o jovem faz ao aprender a ser um
participante pleno na comunidade local de pratica de masculinidade ou
feminidade reside na preparação dele ou dela para fazer assertivas validas em
uma sociedade em que a masculinidade é muito mais valorizada e,
conseqüentemente, exige maiores provas do que a feminidade. (p. 29) “. A
criança ou o jovem, nessa ótica, tenderá a responder o que o grupo social
solicita.
Em
estudo de caso sobre uma creche Calaresi (2011, p.28) concluiu segundo dados observados que a pesquisa revelou
... formas de conservação e reprodução dos valores
sexistas, como o oferecimento de bonecas para as meninas e de joguinhos de
madeira para os meninos, a escolha de brinquedos considerados “neutros” para a
recepção das crianças, além da organização dos tempos e espaços com a seleção e
disponibilidade de brinquedos e materialidades para meninos e meninas, juntos,
separados, misturados, em pequenos e em grandes grupos, de forma livre,
dirigida, solitária, em lugares fechados e em espaços ao ar livre, com as
mesmas turmas de crianças ou com as crianças maiores e suas professoras.
A partir de dados empíricos percebo que o
aluno que não participa das aulas e com baixa autoestima isola-se dos colegas
por não conseguir ler ou escrever como os demais. Assim, demonstra agitação nas
aulas, porém tem um grande potencial para o handball. A
menina é muito quieta e tímida, chora com muita facilidade, isola-se dos
amigos, pois não domina o cálculo mental e assim distrai-se com facilidade
durante a aula. Ele pode ser rotulado como hiperativo, mas tem chances porque
se destaca no esporte. Ela passa inicialmente despercebida, afinal é distraída,
pode ser ter déficit de atenção.
Os
distúrbios de aprendizagem podem ser originados pela sociedade, como afirma a
psicopedagoga Fernandez (2012). Mas estariam os problemas e os distúrbios de
aprendizagem relacionados às determinações sociais do gênero masculino e
feminino?
Na
minha pratica clinica noto que a incidência pelo atendimento psicopedagogico é
maior no gênero masculino. Parece haver uma grande exigência de um bom
desempenho escolar para com os meninos. Fernandez (2013) concorda com essa
questão e assinala que de 75 a
80% dos pacientes encaminhados são do sexo masculino.
As
primeiras aprendizagens são estabelecidas nas relações parentais através da
identificação. A figura feminina, mãe, empregada ou avó, parece ser ainda predominante
nos ensinamentos iniciais. Porém creio ser importante ressaltar que hoje a
figura masculina está cada vez mais presente no desempenho de tarefas que
outrora era delegado às apenas as mães.
No cenário atual surgem novas configurações
familiares encabeçados ora por pais, ora por mães ou até avós. Os papeis
sociais parentais são complementares. Vaitsman (1994) acentua essa questão ao
afirmar que “O pós-moderno no casamento e na família caracteriza-se pelo fato
de que, em circunstâncias contemporâneas, diferentes padrões de
institucionalização das relações afetivo-sexuais passaram legitimamente a ”coexistir,
a colidir e a interpenetrar-se “(p.52). O padrão de relacionamento de casamento,
portanto transmitem idéias novas sobre o gênero.
Paechter
(2009) salienta que as forças hegemônicas da relação entre o poder e o
conhecimento, atribuem a diferença entre os gêneros como que fosse “natural” e,
portanto inevitável. Para a autora a supremacia dos homens e meninos na relação
de poder e conhecimento são herdados do patriarcado. Desta maneira ao se
atestar a diferença entre os gêneros naturalisticamente diante da influencia
social, legitima-se a “... continuidade de relações desiguais entre homens e
mulheres e meninos e meninas e constituem um poderoso inibidor de desafios e de
transformação” (p. 54).
Ou
seja, quando se considera o processo de aprendizagem de meninos e meninas como
diferentes em desempenho e expectativa de rendimento de conhecimento escolar,
ressalta-se a supremacia do gênero masculino de domínio sobre a feminina
subjugada e inferior. Parece haver ainda uma exigência de desempenho social de
conhecimento, maior sobre o gênero masculino, apesar das mudanças sociais.
A
questão é considerar os gêneros, de masculinidade e feminidade, com
possibilidades de aprendizagem iguais.
Ao analisar as relações familiares dos pais,
irmãos e educadores Paechter (2009) admite que ainda esteja presente no
cotidiano das pessoas dificuldades de intervenções sobre o conhecimento e o
gênero. Observa que é comum o uso de mensagens contraditórias no dia a dia; o
pai ou a mãe pode transmitir uma ideologia de igualdade e, concomitantemente,
expressar mensagens sutis sobre desigualdade através de exemplos ou ações. O
mesmo pode ocorrer entre os outros familiares ou educadores. Para tanto recorro
às idéias desta autora e apresento as seguintes sugestões a fim de incentivar a
igualdade de aprendizagem entre os gêneros:
·
Promover
uma grande variedade de brincadeiras e brinquedos, nos quais se evitará o
rótulo “para meninos” e “ para meninas”.
·
Encorajar
os jogos e situações escolares e familiares contra-estereótipos. As meninas
devem ser incentivadas a participar de jogos de ação e de aventura.
·
Tentar
ficar alerta para a maneira de usar expressões e abordagens sobre os gêneros de
maneira diferenciada, ou melhor, evitar tratar os meninos e meninas de forma
distinta.
·
Disponibilizar
vários exemplos em livros, em imagens e em conversas do dia a dia, de adultos e
crianças em atividades contra-estereótipo.
·
Contestar
os comentários genéricos das crianças sobre homens e mulheres. Portanto, quando
uma criança afirma “meninos não fazem isso”, encontrar um exemplo para
contrapor.
·
Tomar
cuidado com o uso da linguagem e assegurar para não reforçar a barreia entre
meninos e meninas. Assim é preferível nomear o grupo ao invés de se referir “as
meninas”, ou “ os meninos”.
·
As
meninas devem ser apoiadas na conquista e na celebração do sucesso
acadêmico. Pode ser interessante
discutir com elas o que significa ser “boa menina” e suas implicações sociais.
·
Questionar
premissa de que a competição em sala de aula beneficia os meninos
·
Os
educadores e pais devem conceber modelos de atuação sobre uma variedade de
estilos de masculinidade e feminidade.
Do
ponto de vista psicopedagógico, concordo com Fernandez (2013) ao comentar que é
necessário ficarmos atentos aos estereótipos socialmente estabelecidos no
desempenho da autonomia do pensamento de meninos e meninas, enfim na sua
aprendizagem. Entender e refletir sobre as questões de aprendizagem e gênero,
criar novas possibilidades no futuro sobre as diferentes masculinidades e
feminidades e o aprender.
Referencias bibliográficas
ARIES,
Philippe Historia Social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
CECCARELLI,
Paulo Roberto (org.) Diferenças sexuais. São Paulo: Escuta,
1999.
FERNANDEZ,
Alicia Psicopedagogia em psicodrama:
habitando El jugar. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 2000.
PAECHTER,
Carrie Meninos e meninas: aprendendo sobre masculinidade e feminidades. Porto
Alegre: Artmed, 2009.
VAITSMAN, Jeni Flexíveis
e plurais: identidade, casamento em circunstâncias pós-modernas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.